Esse é um post diferente do que costumamos publicar saiba todos os trâmites de um processo judicial e no caso o Juiz que julgou foi super procedente.
Pela amiga Débora Aligiere, obrigada por nos brindar com suas palavras!
Ivana (nome fictício dado à cliente para preservar seu direito à intimidade) foi diagnosticada com diabetes tipo 1 aos 4 anos de idade, em 1994. Há algum tempo vinha procurando uma forma de receber seus insumos de diabetes (insulinas, fitas, lancetas e agulhas) do Estado, através de pedido à Secretaria da Saúde, mas nunca recebeu uma resposta positiva.
Apesar de controlar a alimentação através de contagem de carboidratos e praticar exercícios, utilizando as insulinas lantus e lispro não conseguia manter a estabilidade de sua glicemia, que oscilava bastante. Além disso, tinha dificuldade de perceber as crises hipoglicêmicas, o que resultava em episódios de crises espasmódicas (convulsões).
Em função deste quadro, o endocrinologista de Ivana indicou o teste com a bomba de infusão contínua de insulina, para verificar se as oscilações e as hipoglicemias graves diminuíam, o que de fato ocorreu durante o mês de teste.
Findo o período do teste, os pais de Ivana adquiriram o aparelho para evitar as crises hipoglicêmicas graves, mas perceberam que não conseguiriam manter o tratamento em função do custo elevado. Ela então apresentou relatório médico e receitas à Secretaria do Estado da Saúde que, como se nada tivesse sido apresentado, respondeu com um pedido de apresentação dos mesmos documentos.
Percebendo a negativa disfarçada na resposta do Estado, Ivana me procurou para obter judicialmente os insumos da bomba.
Entrei com o pedido dos insumos através de uma ação chamada mandado de segurança, utilizada quando o direito da pessoa é bastante evidente, como neste caso, pois, além do artigo 196 da Constituição Federal garantir que saúde é direito do cidadão e dever do Estado, existe uma lei estadual paulista afirmando que todos os diabéticos devem receber todo e qualquer tipo de tratamento, tendo a autonomia como uma de suas diretrizes.
O Juiz que recebeu o processo manifestou-se no sentido de que, embora demonstrada a necessidade dos medicamentos, o que justificaria a concessão de uma liminar, esta poderia ser dada num outro tipo de ação, não num mandado de segurança.
Vim a descobrir que, após um escândalo de psoríase (parece que uma quadrilha formada por indústria farmacêutica, médicos e advogados se utilizavam de mandado de segurança para obter uma ordem de fornecimento de medicamentos não necessários aos pacientes, e um deles veio a falecer em função do uso do medicamento), os juízes do Fórum da Fazenda de São Paulo “decidiram” que não aceitariam mais mandados de segurança para fornecimento de medicamentos. Por este motivo, a ação que propus em favor de Ivana foi extinta.
Mesmo discordando da decisão, porque o mandado de segurança é um meio que a lei dispôs para o cidadão buscar seus direitos e uma reunião de juízes não vale mais que a lei, e porque pacientes inocentes não podem ser punidos pelos erros de pessoas mal intencionadas, conversei com Ivana de forma bastante prática.
Se fôssemos recorrer desta decisão através de uma apelação, o processo demoraria uns 6 meses para ser julgado e ela ficaria todo esse tempo esperando pelo recebimento dos remédios. Por outro lado, se desistíssemos do mandado de segurança e entrássemos com uma ação normal (ordinária), o Juiz já tinha dado a dica de que concederia a liminar, abreviando o tempo de recebimento dos insumos da bomba, que Ivana precisava para ontem.
Assim, decidimos entrar com a ação ordinária, conforme “proposto” pelo Juiz, a quem o novo processo foi direcionado (pois tratava do mesmo assunto que ele havia decidido antes), e a liminar foi concedida.
O Estado de São Paulo recorreu da liminar concedida a Ivana, mas o Tribunal de Justiça confirmou seu direito ao recebimento dos insumos da bomba até a prolação da sentença.
Um mês depois da concessão da liminar acompanhei Ivana até a Unidade de Dispensação Tenente Pena da Secretaria do Estado da Saúde, no centro de São Paulo, no bairro do Bom Retiro.
Geralmente, o Estado demora um tempo para organizar (fazer o pedido à indústria, comprar, incluir no orçamento mensal, etc) o fornecimento dos insumos após ser intimado da decisão judicial liminar. Por isso Ivana só recebeu o telegrama para retirar seus remédios um mês depois de proferida a ordem pelo Juiz.
Ivana utiliza a bomba da Roche com o monitor de glicemia performa, que “conversa” com a bomba e auxilia a contagem de carboidratos e ainda avisa que o paciente precisa conferir a glicemia 15 minutos após uma crise hipoglicêmica constatada no exame da ponta do dedo. Portanto, para funcionar de forma completa, é necessária a utilização das tiras performa e das lancetas multiclix, compatíveis com o lancetador do monitor performa.
Todavia, ao receber os insumos, percebemos que a Secretaria do Estado da Saúde havia disponibilizado tiras active e lancetas softclix, incompatíveis com o monitor e com a bomba de Ivana. Além disso, a quantidade de insulina era inferior àquela indicada em receita médica (a paciente necessita de 2.250 unidades de insulina por mês, e entregaram quantidade correspondente a apenas 2.000 unidades/mês).
Infelizmente, essa é uma prática (fornecimento incorreto – quantidade e qualidade) da Secretaria do Estado da Saúde bastante comum. Por esta razão, na primeira retirada dos insumos acompanho meus clientes, para garantir que o Estado vai fornecer tudo e exatamente o que foi requerido na ação, e que está indicado na receita médica.
Retiramos a insulina mas recusamos as fitas e lancetas, pois inservíveis para Ivana.
Quando há problemas com o fornecimento dos medicamentos, a Secretaria da Saúde é obrigada a entregar formulário de reclamação ao paciente. Neste caso, a funcionária que atendeu Ivana resistiu um pouco a fornecer este formulário, mas, ante a minha insistência, entregou-nos o documento. Redigi a reclamação, e levei uma cópia comigo para comprovar ao Juiz que a liminar não havia sido cumprida de forma adequada.
O Código de Processo Civil afirma que, para garantir o cumprimento das ordens judiciais, o Juiz pode tomar as medidas necessárias para isso. Assim, já que a Secretaria da Saúde não adquiriu os medicamentos de Ivana na qualidade e quantidade corretas, apresentei orçamento dos insumos faltantes e pedi ao Juiz que bloqueasse a conta do Estado de São Paulo no valor orçado, para que a paciente recebesse o dinheiro do Governo e ela mesma comprasse seus insumos.
O Juiz então determinou o bloqueio das contas do Estado de São Paulo que, atingido no “bolso”, no mês seguinte forneceu a insulina na quantidade correta, e ainda as lancetas multiclix e as fitas performa.
O Estado contestou a ação com base num parecer da Secretaria do Estado da Saúde, afirmando que apenas em casos de insucesso com o tratamento tradicional era fornecida a bomba de insulina. Ainda, apesar de ter respondido com a negativa disfarçada ao pedido administrativo de Ivana, apresentados no processos tanto cópia do pedido quanto da resposta, afirmou que a paciente não havia feito o pedido administrativo. Sem contar que em mais da metade da contestação se referia a Ivana como “o autor”, restando claro que o caso não havia sido analisado com atenção.
Em resposta à contestação do Estado apontei que, com base no parecer suscitado e ainda no relatório médico, que afirmava o insucesso do controle glicêmico com os tratamentos tradicionais, o próprio Governo justificava o tratamento pedido. Ainda, acrescentei mais informações sobre bomba de infusão de insulina e sobre os riscos do mau controle do diabetes, reportagens, diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes, cadernos informativos, etc.
Depois de um mês com o processo em mãos para análise veio a sentença procedente, confirmando a liminar concedida inicialmente. Praticamente todas as minhas ações foram julgadas procedentes, com exceção de uma que teve sentença de improcedência, calcada em erros crassos de fato e de Direito, e que tenho esperança que será em breve reformada pelo Tribunal de Justiça. Daí que a procedência em si não é uma grande novidade.
Mas neste caso de Ivana, além de procedente, a sentença relatou os problemas de diabetes com a propriedade de quem leu todas as informações prestadas no processo, e com sensibilidade de quem enxerga as dificuldades do paciente, ainda que não as conheça de perto. Disse assim o Juiz:
Em primeiro lugar, vale dizer que os esquemas experimentados pela autora para controlar a doença não apresentaram bons resultados, motivo pelo qual a mesma era acometida por hipoglicemia e hiperglicemia graves. O próprio médico da autora indicou-lhe a bomba de infusão, como medida alternativa ao tratamento da doença, que teve sua eficácia comprovada.
É interessante notar que, em casos como esse, o fornecimento de tratamento diferenciado é completamente consoante com o princípio da igualdade, visto que apenas o fornecimento da bomba de infusão, nesse caso, é capaz de proporcionar uma qualidade de vida e saúde adequadas aos padrões aceitáveis.
(...)
No caso, diante do relatório médico que acompanhou a inicial, havendo justificativa para a prescrição da bomba de infusão de insulina, que funciona como um pâncreas artificial, melhorando, assim, o controle da glicemia no sangue, deve o Estado fornecê-la à autora."
É interessante notar que, em casos como esse, o fornecimento de tratamento diferenciado é completamente consoante com o princípio da igualdade, visto que apenas o fornecimento da bomba de infusão, nesse caso, é capaz de proporcionar uma qualidade de vida e saúde adequadas aos padrões aceitáveis.
(...)
No caso, diante do relatório médico que acompanhou a inicial, havendo justificativa para a prescrição da bomba de infusão de insulina, que funciona como um pâncreas artificial, melhorando, assim, o controle da glicemia no sangue, deve o Estado fornecê-la à autora."
Assim, graças à sensibilidade do Juiz, que embora não seja diabético entende o “diabetiquês”, Ivana continuará recebendo seus insumos, e sua saúde e vida serão preservadas.
Débora Aligieri
obs. conteúdo meramente informativo procure seu médico
abs,
Carla
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