A diálise salva milhares de brasileiros com doenças renais. Ainda assim, uma especialista revela que ela é negligenciada nos setores público e privado
Por Ana Beatriz Barra, nefrologista*
29 ago 2019, 14h52
A diálise exige muitos cuidados, mas é um tratamento que muda a vida do paciente. (Ilustração: Erika Onodera/SAÚDE é Vital)
Sou médica e em 2020 completarei 30 anos trabalhando com diálise. Muitos me perguntam porque escolhi esse caminho. Respondo: me encantou trabalhar com um tratamento que permite que os pacientes vivam apesar da “ausência” de um órgão vital. A diálise substitui rins muito doentes, filtrando toxinas e equilibrando a concentração de sal e outros eletrólitos, ácidos e, especialmente, líquidos. Uma estratégia assim não existe para qualquer outro órgão essencial à vida.
Essa fantástica terapia pode ser utilizada por breves períodos (como na doença renal aguda) ou pelo resto da vida, para preservar pacientes sem perspectivas de recuperar a função dos rins (doença renal crônica) e que não podem, ainda não conseguiram ou mesmo não desejam receber um novo órgão transplantado. Sim, algumas pessoas estão tão bem em diálise que decidem não fazer essa cirurgia.
Que fique claro: o transplante renal é um excelente tratamento. Ele deve ser estimulado sempre, pois eleva a sobrevida e dá uma maior liberdade de “ir e vir”. No entanto, como na diálise, há necessidade de cuidados e uso regular de medicações.
Além disso, a população precisa ter ciência de que, se tudo correr bem, o rim transplantado usualmente funcionará por um longo período (cerca de dez anos). Mas não para sempre.
Diálise para o resto da vida?
A diálise crônica pode ser assustadora e realmente reduz a liberdade do paciente. Ela também exige uma grande capacidade de adaptação às novas rotinas (inclusive por parte da família), restrições e, principalmente, resiliência em relação a possíveis percalços.
Mas ser feliz, produtivo e realizar sonhos é possível com o tratamento de substituição de função renal. Ao longo dos anos, vi inúmeros pacientes ativos em suas profissões. Também acompanhei casamentos, retomadas de esportes prediletos, sonhos de viagens realizados, mães dando à luz, formaturas… E até observei pessoas que, por causa da diálise, tiveram tempo de reconstruir relações importantes no final de vida.
Para vermos desfechos tão positivos, no entanto, é necessária a assistência de profissionais altamente especializados, muita tecnologia e individualização do tratamento. A personalização precisa considerar não somente as características clínicas do paciente, mas também seus desejos e estilo de vida.
Nesse sentido, um dos princípios mais belos do Sistema Único de Saúde (SUS) deveria ser aplicado também na diálise crônica: a equidade. Ou seja, tratar o diferente de modo diferente, para que cada paciente se adapte à terapia e se reintegre à sociedade da melhor forma possível.
Só que no Brasil, o que temos visto é um trágico sucateamento do setor. O valor do procedimento de hemodiálise crônica é o mais baixo da América Latina. Não se consegue mais atrair profissionais diferenciados nem utilizar as melhores tecnologias.
Com isso, o impacto da diálise na melhoria da qualidade de vida é menor. O Brasil sequer conseguiu reduzir a mortalidade dos pacientes em diálise em meia década: cerca de 20% deles morrem ao ano no país e essas taxas não melhoraram nos últimos cinco anos.
As clínicas especializadas tentam manter a resiliência com um ótimo trabalho multidisciplinar. Elas contam obrigatoriamente com médicos, enfermeiros, nutricionistas, assistentes sociais e psicólogos em um ambiente altamente regulado e vigiado. Mas são ilhas em meio ao descaso e insensibilidade de todo um sistema.
A maioria das fontes financiadoras da terapia dialítica no Brasil na rede pública ou privada permite somente tratamentos restritos, padronizados e de baixo custo. Mais do que fracassar do ponto de vista dos objetivos para cada indivíduo, as fontes financiadoras erram ainda na análise de sustentabilidade do sistema de saúde. Um paciente renal crônico mais saudável e ativo tem um custo global menor e produz mais.
Há inúmeros exemplos dessas distorções. Vou pinçar um emblemático: os remédios que tratam a anemia e os distúrbios ósseos dos pacientes renais são liberados apenas por meio de excessiva documentação e que muitas vezes não atende a casos específicos. As prescrições dos médicos comumente são desrespeitadas.
Além disso, em muitos locais a medicação não é entregue ou não pode ser mantida nas clínicas, onde deveria ser aplicada, o que compromete a aderência e a eficácia. E essa não é uma realidade somente no SUS. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não obriga os convênios a oferecerem tais medicamentos para a doença renal crônica.
Outra mazela: o acesso vascular. Frequentemente, a confecção de fístulas arteriovenosas (FAV), uma técnica para realizar a diálise por meio de um acesso no braço, é tardia, principalmente por falta de diagnóstico precoce da doença renal grave. Então a maioria dos pacientes acaba necessitando de um cateter em uma veia no pescoço ou na virilha, o que implica em desconforto e risco de infecções e tromboses.
Para piorar, a medicação que desfaz trombos dentro dos cateteres não é garantida nas clínicas de diálise sequer por convênios privados. O doppler, exame que mapeia as melhores veias e artérias para a confecção da FAV, não é assegurado no SUS.
Resultado: sobe o número de internações em instituições públicas ou privadas por infecções complicadas de cateteres e falências crônicas ou agudas de acesso vascular. Isso onera o sistema e torna a jornada da diálise uma tragédia para pacientes e familiares.
Poderia citar inúmeros exemplos, mas quero terminar falando dos meus sonhos. Temos ótimos casos de equidade no sistema de saúde brasileiro, como o programa da aids. Sonho que os pacientes em diálise sejam atendidos da mesma forma. Que tenham suas limitações respeitadas, que possam ter reintegração social e um futuro que valha a pena viver. Que sejam tratados com consideração a todas as suas restrições e diferenças. E deixem de ser tratados com indiferença.
*Ana Beatriz Barra é nefrologista e gerente médica da Fresenius Medical Care
obs. conteúdo meramente informativo procure seu médico
abs
Carla
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