Eu, minha mãe de quase 80 e aquela jovenzinha da foto, juntas, iremos propagar afetos pelos obstáculos do caminho. De mãos dadas e com um sorriso no rosto, seguiremos adiante… pois amanhã serei velha!
No alto do armário a enorme caixa de papelão com a tampa florida que avisto, parece ser um convite a abri-la. Depois de tanto vasculhar memórias impregnadas em objetos, caixinhas e caixotes, mergulho naquela imagem capaz de arremessar meu coração para um tempo que, mesmo sem o ter vivido, compõe, sem sombra de dúvidas, muito do que sou. Ela está em mim, em cada atitude e valores. No meu processo de envelhecimento é nítida a semelhança entre nós duas e mesmo com perfis diferentes, me pego olhando e agindo como ela. Na fotografia, nos seus 18 anos, ela sorri e parece assegurar que tudo ficará bem.
O ano era 1958 e a foto foi tirada no dia da festa do seu aniversário no estúdio de um renomado fotógrafo do bairro do Ipiranga, onde ela morava. O vestido, feito por sua mãe, era rodado com uma faixa na cintura que evidenciava o esbelto corpo bem definido pela mocidade. Uma pintura de um vaso de rosas acima da lareira onde ela apoiava o braço direito, compôs o cenário da fotografia, em que detalhes e arabescos ali mostrados tornam presente a beleza realçada, e eu, uma quase velha, sou levada ao encontro da juventude da minha mãe.
Numa tentativa de perceber ali, a mulher de quase 80 anos que conheço e admiro, aproximo a fotografia de meus olhos para melhor observar os detalhes. Ela está lá. O olhar de ontem acolhe a paixão e o romantismo intactos no tempo presente, assim como o amor pelo meu pai que, na foto, foi registrado e realçado pela pintura em volta dos olhos e pelo berloque de uma figa presenteada por ele. Tudo nela é delicado e amoroso e o registro do sorriso, do sapato de saltinho e do anel dos 15 anos que um dia seria roubado, demonstram a continuidade dos afetos existentes na memória.
A velhice dela reflete aquele e tantos outros momentos capazes de anular qualquer possibilidade de ser apenas o que se é. Minha mãe continua sendo a moça do tal retrato que suspirava vida e se comportava com delicadeza.
Atualmente a tal mocinha tem sido convidada a contornar alguns problemas impostos pelo avanço da idade que insiste em desgastar corpos, calcificar dores e dificultar a vida.
De mãos dadas, ela e minha velha mãe passeiam apoiadas, uma na outra, pelo quintal da velhice, onde as novidades de um viver mais pesado geram estranheza enquanto despontam a sabedoria conquistada.
Observo a tudo, leio nas entrelinhas e noto o amor daquela moça na minha velha mãe. Com a foto nas mãos fecho os olhos e as percebo bem aqui em mim. Como numa oração, repito mantras, envio desejos para que ela se restabeleça das dificuldades impostas pelo nódulo no seu pulmão. Em que momento você se sentiu sufocada, mãe? Em que momento não pode suspirar? Concentro meus anseios para a moça da foto e para minha mãe velha e igualmente bela. Sei que juntas saberão trilhar esta dura parte do viver.
Em súplica, junto-me a elas e ao caminhar presente e difícil cujo estorvo irá se dissolver em nossa cumplicidade de amor. Eu, minha mãe de quase 80 e aquela jovenzinha da foto, juntas, iremos propagar afetos pelos obstáculos do caminho. De mãos dadas e com um sorriso no rosto, seguiremos adiante.
A campainha soa e do estado meditativo contemplo a realidade atrás da porta. Minha filha chega em casa com o mesmo sorriso no rosto. Agora somos 4. A vida se repete e se manifesta em esperança em meio a desordem. Olho novamente para a foto e é minha filha quem vejo e quem nos assegura que tudo ficará bem.
Cristiane T. Pomeranz
Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemoriasemcasa.com.br
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