Berna Almeida II
Cantar
é uma atividade simples e eficaz. Permite trabalhar de forma alegre e
espontânea vários aspetos importantes para o bem-estar da Pessoa que
sofre de demência.
Com este artigo pretende-se focar alguns desses aspetos.
António Damásio, no seu recente livro A Estranha Ordem das Coisas diz:
‘Quando
os seres humanos começaram a fabricar flautas, provavelmente já teriam
começado a usar o “primeiro” instrumento musical – a voz humana – e
talvez até o “segundo” – o peito humano, uma cavidade natural adequada à
percussão.’ cfr. p.248.
Nesta
linha, Habibi & Damasio já levantam a hipótese de que as práticas
musicais, tão antigas quanto o homem, estão relacionadas com a regulação
da vida, incluindo as áreas ligadas às emoções e aos sentimentos.
Efetivamente
a música, enquanto fenómeno humano, universal e estético, faz parte da
nossa vida, e essa ligação música-emoção justifica o poder que esta tem
em nós, bem como a enorme responsividade do cérebro a este estímulo.
Ora,
quando cantamos, juntamos esse poder da música a algo que nos marca
enquanto seres humanos: a voz. É que o canto, através da voz humana,
funde a linguagem com a música, numa simbiose perfeita.
A
linguagem, fundamental na nossa comunicação com os outros e de
expressão do nosso Ser, é uma área que vai sendo progressivamente
afetada pela demência. E em situações já de comprometimento do discurso,
cantar pode ser um meio eficaz para a reabilitação e manutenção da
linguagem, uma vez que permite exercitar e estimular o movimento da
articulação verbal de uma forma alegre, desencadeando a espontaneidade
assim como a fluidez do discurso, e melhorando as competências
comunicativas, com implicações muito positivas a nível do bem-estar da
Pessoa com demência. Este aspeto assume importância porque muitas vezes a
Pessoa com demência já não consegue falar, mas consegue cantar,
permanecendo ainda essa capacidade, como que numa resiliência à doença, e
transformando-se o canto num veículo fundamental de expressão da
Pessoa. Brotons & Koger (2000) salientam as melhorias na fluência e
na espontaneidade do discurso em pessoas que frequentaram duas vezes por
semana sessões de musicoterapia. Por seu lado, Fuji (2014) salienta o
papel do ritmo, um dos elementos que compõe a música, na reabilitação
da linguagem.
Duma
forma geral, quando cantamos sentimo-nos melhor. O trabalho que é feito
através da respiração tem importância, uma vez que de forma
inconsciente, a respiração é utilizada de maneira mais eficaz: não
pensamos se estamos a controlar a entrada ou saída de ar no nosso corpo;
respiramos de forma a conseguir cantar, por vezes de um só fôlego,
determinada frase melódica ou determinada parte do refrão duma canção.
Normalmente
quando se acaba de cantar há uma sensação de bem-estar, de maior
relaxamento, que em parte tem a ver com esse trabalho respiratório, em
que o corpo, de forma natural, vai de encontro à sua própria
funcionalidade, provocando respirações menos tensas e mais relaxadas.
Goldberg
(2016) , numa revisão de literatura sobre o uso e papel coadjuvante
que o canto pode ter na melhoria de patologias associadas à respiração,
conclui pela sua importância quer a nível fisiológico, quer a nível
psicológico, afirmando que, para além duma melhoria no controlo da
respiração, os pacientes encaram o cantar como uma terapia alegre, com
melhorias no humor e no funcionamento físico.
O
próprio ritmo é um poderoso ativador do movimento que desencadeia
respostas motoras espontâneas, tais como dançar, bater o pé, estalar os
dedos, baloiçar o tronco, baloiçar a cabeça, etc. O ritmo acentuado duma
canção pode ajudar a ativar a Pessoa a vários níveis.
Por
outro lado, quando a Pessoa canta uma canção conhecida, recorda não só a
canção propriamente dita, mas o próprio contexto em que se verificou a
escuta/recriação dessa canção havendo, por vezes, lugar à reconstituição
dos sentimentos contemporâneos dessa canção antiga, que envolveram essa
experiência musical. Esta possibilidade acessível à Pessoa com
demência, pode transformar-se num momento de profundo prazer, dado que
determinada música pode ajudar a aceder a memórias, a que de outro modo
não se teria essa possibilidade, recuperando a Pessoa, naquele momento,
parte das suas referências identitárias.
Mas
quando cantamos com outra Pessoa dá-se uma experiência duplamente
gratificante de relação e de reconhecimento do outro enquanto um ser
essencialmente social. Cantar em frente à Pessoa é importante, para que
esta, para além do estímulo auditivo, tenha também um coadjuvante
visual, do movimento dos lábios, numa estimulação multissensorial que
facilita uma maior ativação do cérebro. Por vezes dar as mãos fortalece o
momento, aliando um outro estímulo sensorial. Uma simples canção ou a
repetição do refrão pode ajudar a Pessoa a reconhecer e a situar, a
reconhecer-se e a situar-se. A repetição é importante para ativar a área
cognitiva uma vez que permite dar tempo para que essa ativação ocorra,
para posteriormente se trabalhar mais especificamente a parte da
memória.
Em
fases mais avançadas da doença, a Pessoa pode já não conseguir cantar,
mas consegue ouvir alguém a cantar para si. Esta atividade tão simples,
mas tão natural quanto eficaz, pode ser um momento de aproximação e
ligação do familiar ao seu ente querido. Cantar uma canção conhecida
pode ajudar a acalmar, a centrar a atenção; por vezes pode mesmo haver
em resposta um movimento de lábios, um acompanhamento, ainda que sem
som, mas emocional, criando-se uma experiência positiva, com
possibilidade de se aliviarem situações de mal-estar, em que a atenção
da Pessoa se foca no nosso som, no movimento da nossa boca, na alegria
que transmitimos (e que pode ser contagiante). É que a recriação feita
com prazer pode conter em si elementos positivos na área emocional em
que a Pessoa com demência mima em si esse sentimento de alegria.
Há
ainda outro aspecto que me parece necessário salientar: o cantar em
grupo. Se atendermos que a Pessoa com demência normalmente sofre dum
progressivo isolamento, por diminuição das competências comunicacionais,
e ferindo a possibilidade de entender e de ser entendido, comunicar
torna-se difícil, por vezes muito penoso.
Cantar
em grupo permite integrar pessoas com habilidades diferentes através de
um fenómeno que acompanha toda a vida do ser humano: a música. Essa
experiência partilhada assume uma maior intensidade porque se está em
grupo, e porque quando cantamos utilizamos o nosso primeiro instrumento
musical, a voz, fundamental na comunicação e ligação ao outro.
Após
se cantar em grupo, normalmente verifica-se um aumento da interação
entre os participantes. Um dos projetos interessantes nesta área de
conviver através de atividades de canto em grupo é o projeto “Singing
for the Brain”, um projeto que nasceu em 2003 no Reino Unido e que
funciona em diversas zonas desse país. Este projeto consiste na formação
de grupos, com pessoas com demência e seus familiares, que se juntam
para cantar e conviver. Num estudo de 2016 (Osman, Tischler &
Schneider, 2016) salienta-se o impacto positivo na inclusão social e no
relacionamento entre outros aspetos.
O
musicoterapeuta, enquanto técnico com formação específica na utilização
terapêutica da música, tem a capacidade de gerir e estimular grupos
através da música onde, de uma forma inclusiva, se pretende que a Pessoa
naquele momento se sinta melhor e fique com uma sensação de bem-estar
ligado àquele momento. Saliente-se que há um trabalho cognitivo que está
sempre inerente nestas experiências musicais. O musicoterapeuta tem
ainda a capacidade de acompanhar a Pessoa, no evoluir da sua doença,
adequando a intervenção às necessidades e objetivos que vão surgindo,
num acompanhamento clínico que se caracteriza por trabalhar em
simultâneo várias áreas, criando momentos que atenuam as perdas e ajudam
a viver com melhor qualidade de vida.
Neste
breve texto ficou salientada a importância da atividade do cantar com a
Pessoa com demência. É um recurso ao alcance de todos, de enorme
riqueza para o bem-estar da Pessoa com demência, pela sua importância a
nível dos benefícios na respiração, na linguagem, nas emoções e nas
interações sociais. Refira-se ainda que este último aspeto – o social –
está diretamente relacionado com o importante papel que a música tem na
inclusão da Pessoa com demência, imprescindível numa sociedade evoluída.
Maria Gabriela Nicolau
Musicoterapeuta Certificada pela APMT
Referências:
Goldenberg,
Rachel B. (2016). Singing Lessons for Respiratory Health: A Literature
Review. In Journal of Voice. Language: English. DOI:
10.1016/j.jvoice.2017.03.021
FONTE: https://web.facebook.com/groups/mentesedemencias/
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abs
Carla
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